sábado, 19 de maio de 2012

A Invasão


Já passava da meia idade quando chegara naquele recanto do mundo.Tinha os cabelos praticamente brancos , o que lhe aumentava o ar de serenidade.
Instalou-se numa velha cabana nos arredores da vila ,imóvel este de propriedade do conde Guido Montello , suserano e protetor do local.
De imediato sua presença foi tão sentida quantos os bancos da taverna.
Em uma população preocupada em pagar as rendas do conde em dia ,pouco importava a chegada de um indivíduo com um saco nas costas.
No entanto tal sentimento modificou-se algumas semanas depois quando o dono da taberna veio a descobrir durante uma prosaica conversa com o tal indivíduo ,que este professava a religião mosaica.
A notícia se espalhou depressa ,mais por curiosidade que preocupação .Afinal o último judeu que passara por ali ,fora um médico que curou o corpo de alguns e matou o bolso de muitos , motivo este pelo qual não deixou saudades .
Se estivesse em Gênova ,vendendo escravos ,emprestando dinheiro ,seria normal mas ali naquele condado ás margens do Pó.
Como se tratasse de um indivíduo completamente neutro indo de casa para a taberna e vice –versa  ,pouco se envolvendo com os assuntos da comunidade acabou ficando como um simples cidadão.
Isto até que suas economias escasseassem ,como o vinho não era gratuito nem a morada onde vivia ,tomou uma resolução : iria trabalhar .
E é justamente nesta sutil tomada de atitude nesta decisão que já deveria ter sido tomada antes mesmo do fim de seu dinheiro que reside o foco dos problemas que este professor iria enfrentar .
Como não conseguiu convencer as pessoas do vilarejo a mandarem seus filhos para aprender a ler e escrever ,pois segundo os moradores só quem fosse seguir a carreira eclesiástica é que iria necessitar de tal habilidade ,acabou por ter como seus primeiros alunos o que era pra um eufemismo ,no mínimo, a escória da localidade.
Ensinava sob a sombra das árvores ,ao lado de sua cabana já que nesta poucas caberiam ,e não eram tão poucos ,contavam mais de vinte .Eram bêbados ,prostitutas ,servos e até alguns doentes .Apesar de ser um grupo tão heterogêneo ,Issac conseguiu que todos se empenhassem .Em menos de um ano passaram da leitura vacilante ,para um mergulho nos poucos livros do professor .
Mais exatamente os clássicos ,além da educação convencional dava também sugestões práticas o que acabou por melhorar a vida dos discípulos ,que passaram a tomar banhos com maior regularidade. O que era admirável levando-se em conta a imundice em que vivia as ruas da vila com seus esgoto e lixo amontoados e suas conseqüentes colônias de ratos que zanzavam por toda parte .
Tal acontecimento que foi visto por todos como uma excelente surpresa não encontrou a mesma recepção da parte de Giovani Bonviti o vigário do local .Figura esta que passava a maior parte do seu tempo nos banquetes do conde e só descia até a vila para passar um sermão ou outro nos temerosos fiéis .
Se já via com temeridade a idéia de deserdados aprenderem a ler quando os moradores resolveram enviar os filhos para a tal escola foi a gota d água.
Tudo estava bem claro agora ,um semita vindo sabe lá de onde ,estava tentando minar as estruturas de uma sociedade correta e bem organizada .Eram necessárias providências urgentes e foi o que fez .Primeiro tentou mostrar ás pessoas que compreender as letras era tarefa sua e que se elas também o soubessem ,isso iria prejudicar o rendimento do trabalho ,já que eram funções distintas .
Nada feito ,todas as pessoas perceberam a melhora nas que aprenderam a ler .
O padre argumentou ,falou ,clamou mas nada ,a escola acabou por ganhar novos alunos .
Diante de uma situação como esta o roliço diácono só teve uma resolução ,falaria com o conde .
No entanto faz-se interessante notar que enquanto Bonviniti decidia suas atitudes futuras outras pessoas na mesma região também tomavam suas resoluções .
Alunos e professor sabiam que para o prosseguimento do seu estudos era necessário um elemento básico :livros .
Como tinha devorado os poucos títulos de Issac , precisavam de outros e mais outros nesta corrente infinita que é o aprendizado.
Como nesta época em que ocorre os fatos não se encontravam estes artigos em qualquer ponto de venda ,a situação não era das melhores .
Porém deixemos estas considerações acacianas e partamos para a sugestão de um dos alunos .
Já passava do meio dia e estavam todos  sentados num comprido banco de madeira em formato semi-circular á sombra de uma antiga oliveira .
Ao centro próximo ao tronco Issac estava em pé com os braços cruzados .Era reto como I ,sua barba ao contrário dos cabelos da cabeça não tinha encanecido por completo .
Usava vestimentas escuras que estavam sempre limpas .
- E se pedíssemos ao conde para usar a biblioteca do castelo .?
Assim que Amanda falou um riso contido brotou no rosto dos demais discípulos.
Era uma jovem lombarda alta e magra de olhinhos azuis muito vivos .
Apesar de seus vinte seis anos de idade já possuía mechas esbranquiçadas por entre o louro de seus cabelos que passavam a maior parte do tempo cobertos por um lenço .
Suas mãos ,apesar de serem as de uma moça eram tão grandes e grossas quanto a de qualquer um dos homens ali presentes ,efeito dos incontáveis dias que passara a semear ,cultivar e colher batatas .
O condestável conde tinha por hábito empalar seus desafetos e não era exatamente um homem que apreciasse pedidos de aldeões.
Várias idéias foram dadas ,mas sempre se voltavam para a biblioteca .Isto era natural já que era o único local que dispunha de artigos tão raros naquelas redondezas
-E se nós entrássemos sem que ninguém visse ,e se nós invadíssemos .
Fora Amanda quem falara novamente ,porém ninguém esboçou nenhum sorriso.
Apenas seguiram o olhar do mestre que se dirigiu para o alto da colina no outro lado da vila ,aonde estava edificado o castelo ,com suas paredes cinzas ,o que conferia ao local um aspecto nada agradável .
Como toda idéia estúpida acaba muitas vezes revelando-se interessante ,passaram a partir daquele momento a planejar a invasão .
Ficara acertada o dia e a hora de tomarem emprestados os livros do nobre suserano.
Quanto ao padre após o relato ao conde ,recebera como resposta deste,enquanto destrinchava um pernil e limpava a mão na toalha da mesa .
-Que me importa que este povo leia.Não estão pagando as taxas em dia ?Então?
-Faça o que quiser Giovani só não vai atrapalhar os pagamentos .
O diácono voltava para a vila preocupado ,não lhe agradara nem um pouco a apatia do nobre .
As sombras da noite já haviam coberto a vila ,quando avistou um fato que iria lhe preocupar ainda mais .
Um dos alunos do judeu explicava a três homens algumas de suas idéias .Falava exatamente assim :
-Todo ser humano é igual ao outro ,não existe base lógica para o pagamento de um imposto que existe para a manutenção dos luxos de um nobre .Nós devemos nos alimentar com as mesmas iguarias que come o conde ,com  a mesma fartura com que enche a pança o imperador .Somos todos iguais, todos nós.  
-nem todos meu jovem –objetou Giovani,saindo de detrás de uma árvore .
-Acho que a leitura de alguns livros acaba por confundir você em alguns conceitos .
-Não diga e quais conceitos são estes?
Assim que percebem o vigário os três ouvintes acharam por bem procurar cada qual o seu rumo.
-Em primeiro lugar o fato que cada um ocupa um posto na sociedade e que esse posto deve ser respeitado e o não respeito a essa norma pode trazer conseqüências ruins a todos .
-Pois eu não concordo ,que mal pode haver no fato dos seres humanos se reconhecerem como iguais .
O discípulo do judeu falava de forma clara e objetiva ,bem diferente do modo como se expressava antes ,quando vivia pelas calçadas.
Giovani esboçou um sorriso feroz e continuou numa aparente tranqüilidade.-Outra questão muito importante é que que você deve lembrar sempre que esta disposição das coisas não é fruto do acaso ,o imperador por exemplo não o é por uma simples questão política ou hereditária mas sim por um desígnio divino .
-Padre,o senhor esta se superando,daqui a pouco algum duque insatisfeito ,reúne um exército derruba o imperador e irá ganhar uma justificativa como esta para ter dado um golpe. Giovani observou o homem e esboçou um novo sorriso ,no entanto era um riso diverso do anterior não forçado ,mas sim de satisfação deste que temos quando achamos a solução de algum problema .
Despediu-se e rumou célere para casa ,o discípulo continuou pela rua e por alguns instantes refletiu ,sobre o que falara ,não que sentisse arrependimento,porém sabia muito bem que por muito menos do que isso ,por qualquer dá cá aquela palha outras pessoas foram churrasqueadas em praça pública ,certa vez assistira um evento destes em Pádua e ainda podia lembrar com perfeição do cheiro que se espalhara entre a multidão .
Era uma bruxa e seu ajudante,na época acreditara nesta versão,já hoje                           Não que parecesse com as tais bruxas ,era tão bonita com seus cabelos castanhos compridos em contraste com sua tez tão pálida.Chegara á praça em cima de uma carroça onde estava atada vestida com um traje negro .Na carroça seguinte estava o ajudante também jovem e com vestes escuras ,ao contrário de sua parceira que mantinha uma tranqüilidade estranha ,olhando a multidão com desprezo ,era possível notar-lhe a inquietação.Mais duas carroças seguiam atrás,cada qual trazendo um boneco de pano .Na verdade representando os mais rápidos que conseguiram escapar .               
Por fim inspirou fundo e olhou em volta as casas;estavam praticamente submersas pela escuridão ,apenas alguns lumes acesos impediam a total desorientação .
A verdade era esta mesma ,venha o que vier,a polé,a fogueira,as capas de Frederico,não volto atrás no que disse .Só mesmo um jovem ,sim ele era jovem,para ter esta coragem tão infantil ao enumerar instrumentos tão dolorosos e fáceis de serem usados.
Assim que pensou isto ,olhou assustado para sua direita pois parecia ter visto um vulto que passava .Deixou seus pensamentos no meio da rua e rumou para o cômodo que ocupava nos fundos da casa do cunhado .
Giovani mal chegara ,afiou a pena chacoalhou o papel e colocou toda a situação do condado ,tudo lógico elevado á quarta potencia .Destinatário :-Frederico imperador .
Duas noites depois um grupo escalava a muralha sul do castelo ,enquanto o vigia ressonava .já dentro da construção foram até a porta que queriam ,é evidente que esta certeza em achar o local correto não se deve ao acaso ,entre o grupo estava uma mulher que já servira no castelo. A biblioteca estava situada no topo da quarta torre ,subiram as escadas internas chegando no último degrau,mais mortos do que vivos .Agora a parte mais difícil ,abrir a porta sem fazer barulho
      Ullian se encarregava disto,tratava-se de um massai de quase dois metros que trabalhara como pirata ,saqueando o Mediterrâneo ,e quando capturado fora vendido como escravo ao dono de uma taberna.
Utilizando um pé de cabra ,produzira um som seco ,um estalo de madeira velha .
Empurrara a porta com todo cuidado e entraram ,acenderam as tochas e um brilho ofuscante brotou em todo o recinto ,fruto da luz das tochas em contraste com a cor clara do piso e o impacto de quem viera de um caminho escuro e encontra a luz de repente .
Como sabiam e tinham certeza que os livros seriam aproveitados de melhor forma longe dali ,acharam por bem levar todos os volumes .
O saque só fora percebido oito dias depois quando o conde precisou escrever uma carta ,carta esta endereçada a uma amante .
A essa altura os bibliófios estavam em pleno uso dos exemplares .
Era evidente a todos ,quem eram os interessados em tais objetos ,a guarda do castelo não perdeu tempo ,e foi direto aos alunos ,porém os letrados não esperaram.
Juntamente a estes acontecimentos uma nova notícia chegara a vila. U regimento inteiro do exército imperial se dirigia para a vila já estavam próximos a Milão em no máximo quatro dias adentrariam o vilarejo.A missão era bem simples ,acabar com a tentativa de revolta liderada por um judeu com vistas a implantar uma república.
Issac e os alunos acabaram por serem encontrados e cercados pela guarda do palácio,estavam a poucos quilômetros da vila ,dentro de um bosque,seriam facilmente capturados se não tivessem usado um estranho instrumento desenvolvido especialmente para aquela situação.
Antes que os soldados desembainhassem as espadas receberam uma chuva de flechas.
Flechas estas provenientes do objeto,uma invenção que lançava de um tubo uma grande quantidade de flechas a cada disparo.
Entraram na vila montados nos cavalos dos esbirros já que estes nunca mais precisariam de suas montarias.
Reuniram a população e anunciaram a nova ordem,que consistia em três regras principais: -Fim das taxas pela utilização da terra ,leis iguais a todos e a extinção do privilegio dos nobres sobre as noivas na primeira noite.
Foram aclamados de imediato ,e informados das tropas que estavam a caminho.
Ullian foram encarregado da defesa da vila,sempre consultava um livro cujo autor era um chinês ,de nome Sun Tzu.
Os demais passaram a aperfeiçoar uma nova idéia contida em alguns livros de alquimia.Juntaram num mesmo recipiente uma combinação contendo salitre,carvão vegetal e enxofre .
Passaram-se os quatros dias esperados para a chegada das tropas e após uma semana não havia nem sinal sequer de um único cavalariço.
O que acabou por chegar fora um mercador que a cada mês passava pela vila,estava num estado totalmente diverso das demais vezes que viera. Começara pedindo comida,suas roupas estavam rotas,juntamente a isto a poeira que o encobria de cima a baixo não deixava dúvidas que caminhara muito.
Após algum tempo já refeito da sede e fome,explicou o que lhe deixara naquele estado.
A palavra era simples mas foi dita após um profundo suspirar. A peste negra.Ela em pessoa grassava sem limites ,atingindo a última cidade onde estivera,poucos sobreviveram nas ruas de Bolonha,mais da metade da população ficara pelo chão a apodrecer ,aja visto que os sobreviventes fugiram.
Assim que terminou de falar,uma nuvem de poeira começou a se delinear no fim da estrada por onde viera.
Tratava-se do que restara do regimento enviado para a vila,eram ao todo quarenta soldados,muitos a pé,alguns montados ,porém todos esfarrapados e famintos.
O coronel tivera a interessante idéia de passar por Pádua antes de atacarem a vila.
Assim como o comerciante,também estavam em fuga em busca de um local respirável.
Foram acolhidos e tratados e em poucos dias já tinham se tornado parte da população.
Porém a mesma peste que salvaria os discípulos ,iria arruiná-los.
Os primeiros casos surgiram uma semana após a chegada do regimento.As mortes foram muito rápidas.Os alunos juntos com Issac e por influência deste,antes de comer lavavam as mãos o que acabou por mantê-los afastados da doença.
Porém era o que Giovani precisava ,viera do castelo onde estava entrincheirado junto com o conde desde o fim da Guarda.
Desta vez sua retórica surtiu efeito,consegui provar por A+B que Issac e seus alunos não eram afetados pela doença e nem seriam, aja-vista que praticavam todo tipo de bruxarias.
A simpatia que as pessoas sentiam pelos alunos transformou-se rapidamente em desconfiança e a medida que a doença se alastrava as coisas pioravam,mesmo com toda a assistência que prestava Issac e seus seguidores.
Acabaram expulsos antes do amanhecer,por Giovani e os que sobraram da vila,com tochas em punho.Não reagiram,apenas levaram o pouco que tinham,juntamente com os livros que foram divididos.Cada qual colocou o que tinha em um saco e decidiram partir para locais diferentes.
Já sabiam como ganhariam a vida a partir daquele momento.